quinta-feira, 19 de agosto de 2010

AS DUAS MULHERES OU AS DUAS IGREJAS

Dr. Ilídio Carvalho
No livro do Apocalipse aparecem com clareza duas mulheres que passaremos a examinar um pouco mais de perto. Iremos compará-las para melhor as compreendermos.
“(…) vi uma mulher sentada sobre uma besta de cor de escarlata, coberta de nomes blasfematórios, com sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de púrpura e de escarlata (…); tinha na mão uma taça de ouro cheia das abominações e das imundícies da sua prostituição. Na sua fronte estava escrito um nome misterioso: Babilónia, a grande, a mãe das prostitutas e das abominações da Terra. Vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos e com o sangue dos mártires de Jesus; e esta visão encheu-me de espanto”.
“Furioso contra a Mulher, o Dragão foi fazer guerra ao resto dos seus filhos, os quais guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus”.

Perante estes dois textos do Apocalipse, uma pergunta baila na nossa mente: de quem fala o profeta? Quem poderão ser ou representar estas mulheres com diferentes matizes?
Quer um texto quer o outro, ambos fazem referência à mulher, só que em diferentes cenários. A mulher descrita no capítulo 12 deste livro, para os comentadores, de uma forma geral, representa uma entidade – a Igreja cristã – “(…) A única interpretação incontestável é a que diz respeito à Igreja”. Quanto à mulher do capítulo 17, as opiniões começam a ser divergentes, oscilando entre: Igreja e Roma.
Quanto a nós, pensamos que a mulher do capítulo 17, mais que não fosse, por uma questão de ritmo e coerência do todo, como veremos, indica uma Igreja com características diferentes da do capítulo 12! Quando a Bíblia fala de Israel para dar a conhecer a sua infidelidade em relação a Deus, este é sempre apresentado como uma mulher que tem duas vertentes: fiel e prostituta.
O Antigo Testamento contém muitas referências a ambas as vertentes. Repare, prezado leitor, por exemplo, neste contexto, na forma poética que o profeta Jeremias utiliza para descrever a relação entre Deus e Israel: “(…) lembro-me da tua fidelidade no tempo da tua mocidade; do amor dos teus desponsórios, quando Me seguias no deserto, naquela terra que se não semeia. Era então Israel propriedade sagrada do Senhor” – Jeremias 2:2,3. O mesmo profeta descreve, logo a seguir, o caso contrário – infidelidade – quando reforça a metáfora conjugal: “Tu, pois, que te tens prostituído a inúmeros amantes, poderás voltar para Mim?” – Jeremias 3:1
Desde já, pensamos, poderemos, em plena consciência, afirmar que a mulher do capítulo 12, representa uma característica da Igreja! Assim é, pelo menos, o que também pensa o nosso autor, quando afirma que: “(…) a mulher (…) só pode ser a Igreja cristã”. Se assim é, então porque é que, de repente, o mesmo símbolo, para certos autores, significará outra realidade diferente, a saber: “(…) Roma imperial da época, que se tornou o símbolo da perversão política, cultural, religiosa”?
Já reparou, prezado leitor, num interessante pormenor que o profeta Jeremias nos mostra - uma dualidade de cenários: o deserto e o habitado. No dizer do profeta, ao recordar o passado, o bom tempo passado juntos, no deserto, (Deus - o esposo e Israel - a esposa), assim se expressa: “(…) Israel era propriedade sagrada do Senhor” – Jeremias 2:3. Depois, devido ao contacto com os outros povos e respectivas influências, o resultado não se fez esperar; aconteceu o pior, espiritualmente falando: a prostituição - “Que injustiça encontraram em Mim para se afastarem de Mim? (…)” – Jeremias 2:5; ou ainda “(…) o Meu povo abandonou-Me (…)” – Jeremias 2:13 ; ou ainda “(…) amo os estrangeiros e quero segui-los” – Jeremias 2:25.
Sob este pano de fundo - Deus o esposo fiel e Israel, a esposa nem sempre fiel - podemos facilmente situar Israel (a Igreja) nos diferentes cenários: Apocalipse 12 e 17! Vejamos alguns detalhes destes dois símbolos para que nos apercebamos dos contrastes existentes:
Perante esta comparação de contrários, a primeira imagem que salta aos olhos é que, não somente ambas são identificáveis com a mesma realidade (Igreja), como também evidenciam a fidelidade e o seu contrário! Que conclusão poderemos tirar como corolário desta grelha de dados? Quanto a nós subscrevemos totalmente, não só o esquema que nos é proposto, como também a conclusão de que a “identidade da prostituta do Apocalipse não é uma potência pagã nem um poder político. Na linha das imagens da Bíblia, a prostituta do Apocalipse simboliza a infidelidade do povo de Deus; na perspectiva do Novo Testamento, é a Igreja que se desviou e se comprometeu com os amantes da terra”.
Esta mulher que também representa uma Igreja corrompida! Ela está prostituída! O que é curioso neste capítulo 17 do Apocalipse é que aqui a ênfase recai totalmente sobre a mulher! Esta, apesar de representar uma Igreja, está totalmente identificada com o Dragão, que é Satanás (Apocalipse12:9).
Mas esta Igreja prostituída ainda mantém a aparência e a forma religiosa! Já reparou bem? Ela tem na mão uma “taça” um cálice! Este não contém, “(…) a nova aliança no Meu sangue (…)” – S. Lucas 22:20, por estranho que possa parecer! Mas está cheio de “abominações e imundícies” – Apocalipse 17:4! Se recordarmos o que é dito do v. 1-6, e tendo em conta este cenário, poderemos elaborar algumas considerações, a saber:

1- Como Igreja, perdeu a sua razão de ser;
2- Deixou de ter comunhão com Deus;
3- Afastou-se da comunidade que lhe deu origem, para instituir-se com estrutura de poder;
4- Utiliza a opressão política e institucional para atingir os seus fins. Estes últimos são blasfemos, visto que a Igreja instituída deixou de ouvir a voz de Deus.

Esta deixou de falar através da comunidade dos fiéis, para falar em nome próprio, com a pretensão de ser, ela mesma, a voz de Deus! Deixou de representar o povo de Deus porque esta não ouve nem obedece à voz da verdade – a Deus!
Quanto à outra, a mulher fiel, o texto de – Apocalipse 12:17 - revela-nos que o Dragão atacará, impulsionado pela fúria, a todos quantos estão abrangidos pela letra e espírito do texto apocalíptico, a saber: 1- Ao resto dos filhos da mulher (Igreja); 2- Aqueles que: a) Guardam os Mandamentos de Deus; b) Que têm o Testemunho de Jesus.
Estes, que são designados como sendo o “resto” da mulher, quem poderão ser? Confessamos a nossa ignorância: NÃO SABEMOS! Mas uma coisa sabemos - exactamente o que o texto nos esclarece – as características que definirão este “resto”, este “remanescente”! Estas estão expressas, não é preciso adivinhar!
Quais são? Recordamos: a) Guardam os Mandamentos de Deus; b) Que têm o Testemunho de Jesus. Quem, eventualmente poderá ser? À luz do esclarecimento bíblico, quem estará à altura de preencher estes requisitos? Os judeus, porque guardam os Mandamentos de Deus? Se bem entendemos os textos, tal não deve ser, “(…) visto, porém que a repelis (a Palavra de Deus) (…) voltamo-nos para os pagãos” – Actos 13:46!
Se estes, como povo, não são, perguntamos: quem poderá ser? Cremos encontrar uma possível resposta em S. Paulo “(…) Paz e misericórdia ao Israel de Deus” – Gálatas 6:16; cf. Romanos 9:6; 11:25-27. Quanto a nós, embora não haja uma unanimidade de interpretação, opinamos pelo “Israel de Deus, em distinção do Israel segundo a carne”. Mas, para o propósito em causa, pouco importa visto que o texto em lide não faz distinção entre povo e povo, ou confissões religiosas!
A Bíblia unicamente faz a distinção entre os que guardam, observam os Mandamentos de Deus e os que o não fazem! Isto, por outras palavras, quer dizer que o tal “resto” será conhecido e reconhecido por Deus, não porque - desde o seu nascimento pertence a este ou aquele povo, a esta ou àquela confissão religiosa - mas porque se mantém fiel aos ensinos da Palavra de Deus. Portanto, trata-se de um todo que terá algo em comum: os Mandamentos de Deus, e não serão conhecidos, repetimos, por uma formal aderência a uma Igreja, quem quer que ela seja!
É evidente que, como facilmente se compreenderá, existindo pessoas que tenham algo em comum, tendencialmente, se unirão! Estas têm a mesma fé, partilham a mesma esperança e princípios. Porque ser cristão, prezado leitor, não é, segundo Jesus, frequentar um culto, seja ele qual for, por este ser muito antigo, ou ainda porque a ele assiste a maioria, uma elite, socialmente falando! Mas, unicamente, quando a nossa vida e ensinos estiver de acordo com o que nos revelam as Escrituras, a saber: “Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor entrará no reino dos céus, mas sim aquele que faz a vontade de Meu Pai que está nos céus” – S. Mateus 7:21 (sublinhado nosso)
Ainda a propósito do texto do Apocalipse 12:17, gostaríamos de abrir um pequeno parêntesis para fazermos um brevíssimo reparo à tradução e comentário que o nosso autor faz ao texto em lide. Efectivamente, não compreendemos o porquê da referida tradução! Apesar de conhecermos as nossas limitações linguísticas, a tradução apresentada, na última parte do versículo, não tem grande coisa a ver com o original! Passaremos a apresentar, para comparação, a tradução proposta e o texto original.
Perguntamos, prezado leitor: que relação tem a tradução proposta com o original? Será só para ser diferente?
Depois, ao comentar o texto assim vertido, o autor acrescenta que estes “ estão em oposição aos cristãos que não resistiram às perseguições”! Para o autor em questão, “o Dragão e a Serpente só pode ser o Império Romano” – e, sendo assim, já facilmente se compreenderá a tradução apresentada, para fazer realçar, sob a perseguição imperial, a diferença entre os que permaneceram fiéis a Jesus e os que o não conseguiram!
Só que, tal interpretação do Dragão é abusiva e contradiz frontalmente o que, o texto claramente esclarece! Um pouco mais à frente, é-nos dito que: “O grande Dragão, a antiga Serpente, o Diabo, ou Satanás (…)” – v. 9. Então, como facilmente se compreenderá, por exclusão de partes: se a tradução apresentada não tem qualquer sentido, em relação ao original - de igual modo o seu comentário também o não tem! E bastará ler o versículo com atenção para que o leitor se aperceba que não se trata, de modo algum, de mostrar vencedores, mas unicamente revelar a todo aquele que lê - quem será o alvo – da ira do Dragão!
A Igreja verdadeira deixou um resto com características que o identificariam como tal! Como já dissemos, não existe, como – resto – uma Igreja, mas unicamente pessoas que aderirão a este selo, esta marca identificadora de possuírem a Verdade! O Dragão ou Satanás, tal como o define as Escrituras, tem ao seu dispor, nos nossos dias muitas confissões religiosas, guarnecidas por verdadeiras multidões espalhadas pelo globo! Mas o profeta revela que, o “resto” que incomoda o Dragão, porque segue o seu evangelho, a sua vontade ou doutrina, será alvo de uma “guerra”!
“O Dragão foi fazer guerra”! Porquê? Já pensou, prezado leitor, na razão desta declaração de guerra? Já notou que ninguém o magoou fisicamente ou até lhe faltou ao respeito? Estas, em termos humanos, seriam causas maiores que justificariam, talvez, uma agressão da parte ofendida em legítima defesa da honra e do bom nome, não é verdade? Mas não! Por estranho que pareça, a ira, o ódio só têm uma única razão: esta criatura quer ser adorada como Deus, mas só os que conhecem as Escrituras é que estarão habilitados a responder negativamente a tal pretensão! Porquê? Porque só a Bíblia e não outra fonte qualquer, é que nos esclarece quem é, realmente, quem! Por outras palavras mais simples: só estes é que estarão à altura de DESMASCARAR os seus subtis ardis, não outros!
Estes, prezado amigo, incomodam o Dragão porque podem demonstrar pelas Escrituras o não fundamento de certos ensinos pseudo-bíblicos; estes são, tal como a profecia aponta “os que guardam os Mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus”. E quanto à restante cristandade, por inerência, confissões religiosas? Nunca o incomodaram, sempre estiveram ao seu lado – na pseudo-verdade – por isso, não existe ira ou guerra da parte do Dragão, como facilmente se compreenderá!

Bibliografia:
André Feuillet, L’Apocalypse, Paris, Ed. Desclée de Brouwer, 1962, p. 96 ; Cf. Leonhard Goppelt, Teologia do Novo Testamento, 2ª ed., Brasil, Ed. Vozes, 1983, Vol. I e II, p. 453
Idem, p.454; Cf. Charles Brutsch, op. cit., pp. 277,278
Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit., p. 124
Charles Brutsch, op. cit., p. 278, nota 4
Jacques Doukhan, Le Cri du Ciel, pp. 223,224
F. J. Leenhardt, Epístola aos Romanos, S. Pulo, Ed. ASTE, 1969, p. 304, nota 33; Cf. Frédéric Godet, Commentaire sur l’Epître aux Romains, 3ª ed., Genève, Ed. Labor & Fides,1968, pp. 402-406
Joaquim Carreira das Neves, OFM, op. cit., p. 124
Ibidem

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